quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Nunca esta casa esteve tão vazia

    Nunca esta casa esteve tão vazia. Apenas uma senhora vive na residência para a qual havia se mudado há 40 anos.
   Nascida no vilarejo onde hoje se localiza a fazenda Comprida, no oeste baiano, Marcolina de Miranda Pacheco se locomoveu com seus marido e filhos para outro vilarejo na mesma sertania árida do Agreste.
   Marcolina, ou Dona Preta (como é carinhosamente chamada por todos que conhecem) e seu marido Manoel de Souza Pacheco, já falecido, levavam uma vida difícil, situação proporcionada pelas questões socioeconômicas desfavoráveis do nordeste, à época uma situação vivida por todos os habitantes da região, cujos problemas perduram nos dias atuais.
   Quando chego para visitá-la, Dona Preta mostra um misto de felicidade e timidez, pois é vaidosa. Gosta de tudo organizado, ainda mais quando chega um neto. A timidez aparece pelo fato de eu trazer minha namorada, ainda mais inesperada do que a minha visita.
   Entrando pela casa, tropeço em um dos cachorros, novos pra mim. Minhas lembranças remetem ao velho Guaraná, que também já se foi. Velho companheiro de “Mané Pacheco”, em suas expedições mata adentro.
   O cacarejar das galinhas não atrapalha o som das folhas na primeira brisa do inicio da tarde. Porém essa brisa não alivia em nada o calor insuportável da região.
   Na verdade não alivia para mim, habitado por toda a vida em São Paulo, visto que Dona Preta parece nem perceber. Tanto que, de imediato, prepara um café e separa pedaços de requeijão que, misturadas a temperatura local, o estomago não acostumado pode sofrer um pouco.
   Após preparar o café, direciona-se para cuidas das plantas, alimentar sua gata (ainda a mesma, cujo nome desconheço até hoje, mas mostra uma fidelidade incomum) enquanto fico contemplando toda a casa e relembrando as incontáveis histórias.
    Cansada, mas contente, Dona Preta retorna para a sala onde está localizada uma caixa com fotos que ajudarão durante a conversa e ainda mais nos seus momentos de solidão na velha casa.
     Dona Preta levou uma vida difícil, mas se sente completamente realizada ao relembrar os caminhos de toda sua família. Ao falar dos filhos, sua contagem é a mesma feita por muitas mulheres que viveram nas mesmas condições: teve 12 filhos vivos e 1 morto. Este único chamado Lucas, o caçula. O xodó. Mas, calejada, mostra uma conformidade ao falar do tio que não conheci, não derrama lágrima, mas a caída do olhar já mostra todo o pesar de uma mão que perdeu o filho.
     Em compensação, o sorriso resplandece de imediato ao falar de filhos, netos e bisnetos. Ao olhar pra minha namorada Priscila, solicita, aos risos, outro bisneto, para nossa apreensão.
     Todos os seus filhos tiveram como destino a cidade de São Paulo. Aos poucos foram se mudando para diferentes cidades do estado. Os homens se especializaram no mesmo ramo industrial, estabelecendo-se todos na serralheria. As mulheres da casa também tentaram a sorte em São Paulo. Elas se casaram, por ironia, coincidência ou conseqüência, com serralheiros.
     Ao relembrar os netos, estende-se ainda mais na felicidade, onde se orgulha de cada um pela simples fato de existirem. Seus bisnetos a fazem lembrar de sua longevidade, completamente fora das expectativas de que nasceu na pobreza nordestina dos anos 20. Muitas mulheres, como sua própria mãe, chegavam, se muito aos 40. Junho passado completou 80.
    A conversa é interrompida. Já são aproximadamente três da tarde. Hora da novela. Aproveito o tempo para rever aspectos da residência que dão mais vivacidade a historia contada por Dona Preta.
    O chapéu de couro do “seu Mané Pacheco” está na mesma posição, colocado no suporte ao lado da porta após a chegada de mais um dia de trabalho árduo na roça. Mesmo após 13 anos do seu falecimento, dá a impressão de que ele vai voltar para buscá-lo.
    Alguns cômodos mudaram, outros continuam do mesmo jeito. Algumas modificações são justificáveis pela adequação aos habitantes da residência ao longo dos 40 anos, já outros continuam intactos, como o quarto do casal, por exemplo.
    Nos fundos da casa, procuro pelo lago onde, além da função primordial para uma área onde a água esta longe de ser abundante, é o cenário de memórias mais vivo que tenho de lá. Brincadeiras, os (não muito desejados) banhos de “cuia” e a visualização de toda a natureza selvagem propiciada pela região. Um misto de alegria e melancolia transborda em meus olhos. A novela já acabou. Volto à conversa.
   Ao mesmo tempo em que adentro a casa, alguns moradores da região já estão a conversar com Dona Preta. Visitas a ela continuam diariamente, mas, mesmo com a constante presença de pessoas, a casa nunca foi tão vazia.
    Depois do rápido diálogo, os visitantes logo se despedem de Dona Preta, pois já é fim de tarde. Retomamos a conversa nas histórias engraçadas envolvendo toda a família. Priscila, ainda conhecendo um novo mundo, se espanta com os contos envolvendo comida, principalmente quando tivemos que “matar” o prato principal. Dona Preta ri quando lembra do meu espanto a vê-la atravessar o pescoço de um cabrito com uma simples faca, como se fosse algo corriqueiro. Ela confessa que não suporta (e nunca suportou) fazer isso, mas alguém deve fazê-lo.
   Lembramos de festas, visitas a São Paulo, conflitos familiares, assuntos de doce lembrança e outros nem tanto.
   Escutamos um ruído do automóvel chegando. Hora da despedida. Apesar das visitas constantes, e sempre uma hora desagradável. Durante o firme abraço, promessas e benção divina mútua, tanto para proteger nossa volta quanto protegê-la em sua solidão.  Ela reitera que não está sozinha, que está com Deus; apesar de sentir saudades, não pode deixar seu lar, que via ficar até o fim. Fim que está tão longe quanto a distancia de quem ama. E assim se despede acenando de longe, com um sorriso cansado de alguém vai voltar a uma casa que nunca esteve tão vazia.

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